Brenda
Estava um dia brumoso. Brenda só saiu de casa para comprar pão. Hoje podia afirmar que a manhã lhe estava a correr bem. Não tinha apetite para sangue... No momento até juraria que isso eram águas passadas, mas sabia muito bem que não se pode mudar de personalidade de um dia para o outro, mas neste caso a regra não era tão segura. Pela rua tudo parecia morto, extinto, defunto. Pequenas gotas de esgoto escorriam pelas paredes das casas e os ratos corriam pelo passeio. Ratos, os únicos animais que tinham sobrevivido ao terrível cataclismo de 1677. O homem já não se considerava animal. Na opinião de Brenda os homens nunca tinham sido animais, mas criaturas imundas, piores que os próprios ratos. É por isso que também não se tinham extinto.
Quando voltou, a casa tinha sido assaltada. A porta estava arrombada. Não podia ser eles não tinham ousado... Correu até ao quarto, uma gota de suor frio escorria-lhe pela testa. Tirou o cofre debaixo da cama e abriu-o. Uma onda de calor sufocante invadiu-a. Estava intacta. Por sorte eles não a tinham descoberto. A sua arma, coberta de sangue da última matança, permanecia dentro do cofre de madeira.
Passou a tarde normalmente, sem sequer tentar descobrir quem é que a tinha assaltado ou o que tinham roubado. Não era preciso... Não se sentia vingativa de todas a maneiras. Tempos passados em que teria torturado o ladrão caso o descobrisse, já eram. Com os seus 43 anos Brenda considerava-se demasiado velha para esse tipo de aventuras. Bastava-lhe uma bela carnagem de vez em quando. Daí até matar indefesos, inocentes ou não, ainda se tinha de percorrer um longo caminho. Tentou arranjar a porta, mas os esforços foram em vão. Sem a segunda personalidade era tão forte e hábil como uma mulher normal.
A noite foi caindo. Como todas as sextas-feiras de Novembro, foi buscar a arma, vestiu o fato preto e foi para a rua. Sentou-se no banco nas traseiras do café e esperou-o. Ele vinha sempre... Hoje também não podia faltar.
Daniel desceu as escadas do prédio e deu com a rua cheia de polícias. Não era nada bom... Escapuliu-se pelas traseiras e foi ter com ela atrás do café.
Ele finalmente apareceu. Agora a dupla estava completa. Ele tinha trazido a máscara azul escura de sempre e o punhal tridente, mais conhecido por “saïs”.
Nenhum dos dois conhecia a identidade do outro, no entanto de noite, eram os melhores companheiros do mundo. Só faltava a vítima...
Ele achou-a esquisita. Faltava-lhe o fogo ardente sedente de sangue nos olhos, mas não pronunciou sequer um som. Há muito que não a via. Na verdade há um ano que não a via. Tinha saudades das matanças, tinha saudades de ver aquele vulto preto esfaquear sem mercê qualquer um. Tinha saudades dela. Tirou do bolso de trás a identificação da vítima da noite. “Dr. Oliveira – professor de magia negra, residente na Avenida Noiratre, 113” De um simples estalar de dedos, Dr. Oliveira apareceu na esquina.
- Que me querem? – disse uma voz feminina.
Nenhum dos dois pronunciou palavra alguma. O doutor afinal era uma doutora. Já há algum tempo que não lidavam com mulheres. Brenda achava que atacar mulheres era uma ofensa à mais bonita criação de Deus. Mas se tinha de ser, mais valia fechar os olhos.
- Que me querem? – perguntou de novo a mulher.
Os dois companheiros olharam-se nos olhos, confusos, mas mesmo assim a Brenda disse:
- Sabemos que possuis o último cristal negro.
- Também sabemos que esse cristal nos pertence. – completou Daniel.
Olharam-se de novo, era a primeira vez que ouviam a outro falar. Habitualmente comunicavam por gestos ou simplesmente não comunicavam, já sabiam o que tinham de fazer. Era também a primeira vez que a vítima não sabia do que se tratava. A mulher saiu da penumbra, o que realçou uma enorme racha no vestido pela perna direita, onde se notava uma cicatriz profunda.
- Hum, se é disso que se trata... – disse a mulher exibindo um punhal que tinha estado, até ali, escondido na liga das meias– vão ter que passar por cima do meu cadáver.
O polícia Joch fechou a esquadra e meteu-se no carro. Tinha sido um dia bastante agradável. Tentou ligar o leitor de CDs para ouvir a música que toda a gente achava pirosa, mas que ele adorava: “Give me some of it Baby” dos “Zabests”. O leitor de CDs avariara-se, já se tinha esquecido desse pequeno pormenor. Há uma semana atrás, a rapariga de negro “fizera o favor” de lho estragar.
O polícia Joch detestava demasiada agitação no trabalho, detestava a rapariga de negro, detestava o homem azul e sobretudo detestava a porcaria da história dos cristais negros.
“Aviso a todas as unidades: a rapariga de negro e o homem azul atacaram de novo. A vítima foi esfaqueada. Levaram com eles o último cristal negro. Identidade da vítima: Dr.ª Oliveira – professora de magia negra, residente na Avenida Noiratre, 113. Local do crime: esquina n.º 115. É favor a todas as unidades dirigirem-se para lá.”
Brenda e Daniel entraram na cave do café arrombando a porta. Tinha sido demasiado fácil. A mulher era demasiado fraca. A uma certa altura parecia que já não se importava de morrer, já não lutava. Parecia até divertir-se. A mulher foi-se com os olhos muito abertos e um sorriso apimentado nos lábios. Como que à beira de um orgasmo de dor. A imagem desta mulher permaneceria para sempre na memória de Brenda, que nunca tinha morto uma mulher antes. Daniel não se contentou de a matar, depois do trabalho feito ainda se divertiu a esfaqueá-la para além da morte. Sangue escorria por todos os lados. Uma pequena gota teve a audácia de aterrar mesmo no canto do lábio da vítima, tornando o sorriso ainda mais perverso.
Brenda tirou a máscara e Daniel fez o mesmo. Ficaram os dois a olhar um para o outro. Descobrindo pouco a pouco os mistérios de cada um. A atmosfera da cave não era das mais agradáveis, estava escuro, húmido e havia teias de arranha um pouco por todo lado. E muitos ratos...
Daniel aproximou-se de Brenda, devagar. Estendeu a mão em direcção a sua cara de mulher de meia idade que não viveu da melhor maneira os prazeres da vida. Vendo que a cara desta se contraiu Daniel recuou. Brenda continuava a olhar intensamente para os seus olhos. Eram castanhos. Um castanho acaju, avermelhado como o sangue daqueles que torturava, olhos sempre despertos para tudo e todos, sempre sedentes de aventura, e desafio. Brenda voltou dos seus pensamentos desperta por um calor que há muito que não sentia daquela maneira. A mão de Daniel tinha-lhe percorrido a face esquerda deixando para trás uma sensação de calor e cicatriz reaberta que atormentava Brenda. Aquele calor só o sentia quando era emergida pelo sangue das vítimas. Aí era diferente... Esta impressão que lhe persistia na cara lembrava-lhe a sua infância. O dia em que foi buscar água ao único rio, na altura não contaminado e voltou a casa com as entranhas revoltadas por um estranho, o leito desfeito e o lábio a sangrar. Não chorou. Nunca contou a ninguém o sucedido se o tivesse feito o homem tê-la-ia espancado até à morte como prometera. Era este calor que Brenda odiava. O calor humano, de quem ainda respira, de ratos...
Daniel com os seus 29 anos só tinha uma vontade. Descobrir aquela mulher de formas maduras, tão diferente das adolescentes errantes de uma só noite que costumava frequentar. Desejava-a simplesmente pela carne, de uma forma animal. Entrar nela e fundir-se nela num só ser. Torná-la sua e só sua.
Estavam os dois ligados por uma forma de amor brutal. Como bestas devoraram-se mutuamente sobre uma velha mesa de madeira. Ouviu-se um barulho estranho, mas nenhum dos dois notou o que quer que seja. Estavam demasiado ocupados numa busca frenética de prazer imediato. Pouco depois a mesa foi a baixo e os dois caíram no chão. Daniel não se conseguiu conter e largou uma gargalhada. Brenda também queria fazer o mesmo, mas já não se lembrava como o fazer. O triste destino que a perseguia impedia-a de ser feliz.
O relógio da cave tocou meia-noite, iam ambos regressar à primeira personalidade... Mas para isso tinham de estar em casa.
Joch ligou a sirene e desceu a avenida a resmungar. O polícia Joch era um homem simples, pedia pouca coisa à vida, mas quando algo o irritava sabia demonstrar o seu descontentamento. Enervado carregou demasiado no acelerador e acabou a sua triste vida contra um dos candeeiros da ruazinha.
Mal Brenda pisou o soalho ao pé da porta e fechou os olhos voltou de novo à personalidade normal. Era sempre assim. Bastava fechar os olhos por cinco segundos e voltava ao normal. Nem mesmo ela sabia porque é que se transformava interiormente, talvez fosse uma transformação imaginada por ela. Mas lembrava-se que há muitos, muitos anos, talvez séculos atrás tinha acontecido algo estanho às suas antepassadas e que desde então era assim com a mulher mais velha da família Vilma até aos setenta anos. Estas mudanças de caracter, só parariam quando se encontrassem os doze cristais negros e quando os conseguissem juntar para fazer o cristal de bronze.
- Baboseiras!
- Repare senhor inspector, isto é uma coincidência demasiado grande: os antigos proprietários dos cristais eram todos um pouco esquisitos. Repare, a primeira vítima morreu há noventa e três anos, - na altura da instauração da Primeira República – era considerada estranha, percebe?, esquisita, mágica...
- Já lhe disse que não há magias! Carvalho, deixe-se de infantilidades e o caso correrá melhor. Concordo que é uma grande coincidência, mas para que é que esta gente toda queria estes estúpidos cristais?
- Bom, eu já lhe disse, se formos pelas minhas deduções, eles deviam usá-los para feitiços.
- Quais feitiços, qual carapuça?! Pare com isso! Estou farto das suas parvoíces, vá mas é buscar-me um café! O assistente saiu do escritório a resmungar para os seus botões. Mal ele sabia como tinha razão...
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