Porque é que ainda aqui estou?
Afinal, enganei-me de estrada ou quê? Porra, o que é isto?! Gaze? Quero lá saber da gaze! Que coisa, nunca se vendem mapas para os lugares mais importantes.
E também, que zunzum! Eh pá calem-se lá que eu estou cansado!
Calem-se!
E surdos ainda por cima! Não percebem que eu me estou completamente a lixar para o que vocês tão para aí a dizer!
Deixem-me em paz! Gaze, maravilha! Fantástico, agora nunca mais saio daqui!
Eh pá, o que é isto? Estou preso? Ha, ainda por cima! Têm medo que eu me vá embora, é? Faço falta a alguém por acaso? Vá, perguntem a vossa volta! Nem aquela velha ali ao fundo se importa! Está a chorar? Está a chorar mas não engana ninguém!
Deixem-me ir!
Ai o caneco, que eu já não estou a gostar nada disto! Oh chavalo! Oh tu! - Ai, que merda é esta? - Oh tu! Estou cheio de calor! Baixa a porcaria do termostato!
Está com convulsões!
Ai mãe santíssima! É agora. Porra. Onde é que eu deixei a merda da carta? Mariana...Hora do óbito: 22:22
O quarto quente e abafado era pequeno demais para tanta alma.
E no entanto a débil Patrícia dormia...
- Mãe, porque é que a avó não acorda?
- A avó está num sono muito profundo, meu querido. Pode acordar um dia, mas pode acordar nunca.
Olha porque estou em coma pirralho! Porque bati com a cabeça no raio da cómoda quando estava a apanhar a meia do teu avô do chão! Aquele homem nunca arruma nada. Deixa tudo espalhado por todo o lado. Incrível, nunca vi coisa assim!
- Ela está viva, não está mãe?
- Sim, está.
Se estou viva? Claro que sim! Olha-me essa, não se livram de mim tão cedo! Se estou viva?! Bah, mas que pergunta mais parva. Só mesmo tu, pirralho, para fazeres uma pergunta pateta a esse ponto!
- Dói-lhe alguma coisa?
- Não, meu amor, ela está a dormir.
Olha por acaso até dói! Essa Mariana pensa que sabe tudo, mas não vás por ela! Estou aqui com umas hemorróidas há umas semanas e doem-me a valer. Não sabes o que são hemorróidas, pirralho? Olha, nem queiras saber! Uma chatice no cu, é o que são!
E por falar em chatices, alguém viu o Vicente? Miúdo ranhoso, nem sequer cá está!
- Ela ouve o que eu digo, mãe?
- Não, ela está a dormir.
Eu não disse?! Mentirosa! Oiço muito bem! Mas não quero saber disso para nada. Onde é que está o Vicente?
- Posso falar com ela?
Vicente? Vicente?- Vai se quiseres, mas não chegues muito perto.
De repente a velha soltou um grito:
- Vicente!
- Oh minha sogra, enterrámos o Vicente a semana passada. – disse a mulher.
Ai que o deixei morrer! Ai meu amor! Ai meu filho! Meu querido filho! Mas porque é que fizeste aquilo? O que é que eu te fiz?Uma lágrima escorreu pelo rosto gasto de Patrícia.
Assustado, o miúdo chegou-se devagar ao rebordo da cama:
- Avó, gosto muito de ti.
Está bem pirralho.Foi num silêncio aparente que o tempo se eternizou.
E o relógio marcava 22:22.